O OLHAR FEMININO E O DECLÍNIO DO CORPO COMO OBJETO. “LAMENTAMOS MUITO” MAS ULTRAPASSAMOS O TETO
- Vitória Pompeu da Costa
- 14 de abr. de 2021
- 5 min de leitura
Escrevi esse texto no final do 5 semestre da faculdade de Audiovisual e sinto que tem seu lugar como primeiro post.
Esta escrita tem como base o texto de Laura Mulvey, “Prazer visual e cinema
narrativo”, discorrendo sobre: identificação e projeção, questionamento sobre o
espectador universal para além de gênero e novas propostas de olhar. Fazendo uma
ponte com o livro “Um Teto Todo Seu”, de Virginia Woolf, no qual escreveu sobre
mulheres e ficção, usando uma poeta ficcional para construir um caso consistente
pela igualdade. Relacionando brevemente com os filmes O Piano (1993), de Jane
Campion e Não Amarás (1988) de Krzystóf Kieslowski, em relação aos olhares e
alcance de suas respectivas direções.
Um Teto Todo Seu é um ensaio fruto de um convite feito a Virginia Woolf para
palestrar sobre mulheres e ficção. O tema lhe pareceu muito amplo e para abordá-lo
a autora criou um alter ego ficcional para acompanharmos conforme a palestra. Ela
nos convida a imaginar que Shakespeare tivesse uma irmã, a quem chama de Judith,
igualmente talentosa, que por ser mulher, não poderia dar atenção a seu talento
como seu irmão. Judith, antes de seu fim trágico (sem enxergar possibilidades para
sua literatura, suicida-se), luta a opressão social contra seu gênero, não obtendo
sucesso na carreira literária pois “mulher, naquela época, que nasceu com o dom da
poesia no século XVI, era infeliz, uma mulher contra si mesma.”
Tendo existido ou não, nos comovemos com a história de Judith Shakespeare,
que segundo a autora, “jaz enterrada em alguma encruzilhada em que agora os ônibus
param,”, Woolf faz uso da ficção em sua palestra para argumentar sobre as injustiças
causadas pela sociedade patriarcal. Como disse em sua fala, mulheres são um “país
obscuro” e a sociedade não sabe do que são capazes, concluindo que para se dedicar à
escrita ficcional:
“(...) uma mulher precisa ter dinheiro e um teto todo seu, um espaço próprio, se quiser
escrever ficção.”
Woolf, Virginia.
Entretanto, sem recursos financeiros ou validação social, pouco adiantaria para
um mulher conseguir um teto para si própria e sua independência. Não só na
literatura do século XX, mas também na arte e no mercado em geral, os efeitos do
longo monopólio masculino se prolongam neste século para a sétima arte (em
meados do século passado até tempos contemporâneos).
O ensaio “Prazer visual e cinema narrativo”, nos apresenta uma reflexão para
além da hegemonia ficcional hollywoodiana do cinema, nos apresenta para uma
hegemonização de gênero e seus olhares. A tese de Laura Mulvey nos informa que o
cinema reflete em sua forma o inconsciente patriarcal da sociedade. Para a direção
masculina de um filme, a decupagem opera para os personagens também masculinos,
essa decupagem vai erotizar a mulher e possibilitar para o espectador sua projeção
no personagem que olha a mulher, criando um espelho da sociedade.
No meio cinematográfico, o espelho do homem como ativo dono do olhar ao
tempo que a mulher é uma figura passiva que provoca, representa e é exibida para
ele, sendo apenas traços limitantes de um corpo que carrega fantasia e códigos
significativos para o desejo masculino. “O protagonista masculino fica solto no comando
do palco, um palco de ilusão espacial no qual ele articula o olhar e cria a ação.”, e não
apenas o protagonismo na tela como também dentro da equipe de produção.
Atrevo-me a dizer que é uma espécie cíclica de projeções: do inconsciente coletivo
que permeia suas vontades e consequentemente em público para um filme, na figura
feminina como adesivo fantasioso decupado por um olhar masculino, do olhar
masculino que roteiriza superficialmente pensando nas reações que provocará nos
outros personagens em cena e no espectador, em conjunto com uma direção que
opera seu olhar para o fascínio e apreciação da forma da mulher.
O prazer e desprazer oferecidos pelo cinema narrativo apresentam uma forma
cinematográfica ilusionista que representa em sua essência o medo e ameaça que a
ideologia patriarcal sente em relação ao feminino completo, para além das margens
do olhar e desejo. O cinema narrativo se distancia da opacidade em relação a
presença da câmera e da reação dos indivíduos que o assistem, associando-se a fugir
do realismo e do que é verdade. Parafraseando como um questionamento os dizeres
de Mulvey logo na introdução de seu artigo: Como enfrentar o inconsciente
estruturado como linguagem (formado criticamente no momento de adoração da
linguagem) ao mesmo tempo em que ainda se está enredada na linguagem do
patriarcalismo? A autora defende que possibilitar a liberdade para o olhar da câmera
em relação ao tempo e espaço, em conjunto com uma plateia independente de
artifícios de voyeurismo ativo/passivo podem ser um golpe inicial para o cinema
narrativo (e patriarcal). Mas ouso ir além do sumário de seu texto.
Laura Mulvey aborda perspectivas teóricas para a possibilidade de outras
perspectivas de produção. Além das alternativas de quebra e declínio desse cinema
tradicional que faz uso das mulheres, citadas acima, defendo a voz feminina dentro
dos processos de produção e criativos: da escrita do roteiro, da concepção e manuseio
fotográficos, da direção com olhar feminino, feminista.
Em 1993, Jane Campion entrou para a história como a primeira mulher a vencer
a Palma de Ouro no Festival de Cannes, com o filme O Piano, no ano seguinte sendo
nomeada para o Oscar de melhor direção, apenas a segunda mulher a concorrer pela
categoria até então (não que com o passar dos anos algo tenha evoluído, pois 5
mulheres foram indicadas como diretoras em 92 cerimônias). O filme foi roteirizado
e dirigido pela diretora neozelandesa, com uma temática que aborda essência e o
feminino (do século XIX), exibe extrema habilidade na direção de atores e na técnica,
e surpreende a quem assiste com a quebra em relação a sua personagem principal,
Ada, uma mulher muda (ou silenciada pela sociedade, como metáfora) se encontra
fixada a seu piano e não a um homem. A obra de Campion se trata de identidade, seu
conflito central como a luta de uma mulher por preservar a autonomia sobre seu
corpo e sua voz, que os patriarcas que passam por sua vida querem controlar. O
conto de fadas adulto construído por Jane Campion sobre a odisseia de uma mulher
em busca de seu domínio e sua identidade é inspirador para a representação do olhar
feminino no mundo cinematográfico, dominado por olhares masculinos que
observam a mulher para seu prazer, quando não ousam dirigir e tentar representar
seu olhar em filmes.
Em contraponto com a direção e olhar femininos, o filme polonês Não Amarás
(1988), de Krzysztof Kieślowski, responsável pela direção e roteiro, aborda o que
Mulvey descreveria como o voyeurismo, no qual o cinema vai além pois apresenta
espelhos e possibilidades projecionistas para dentro dos filmes (a escopofilia em seu
aspecto narcisista, em quesitos de semelhança, indo além da satisfação dos
primórdios de prazer visual permitidos pelo cinema). Tomek, um jovem de 19 anos,
se distrai observando a vizinha que mora no prédio em frente através da janela de seu
quarto. O caráter voyeurístico da paixão de Tomek remete à própria experiência
cinematográfica. As janelas, tanto a sua quanto a de Magda, são telas que
apresentam um recorte do real, que se transforma em narrativa por ação do desejo e
da imaginação do rapaz (e do espectador). A mulher mais velha, experiente e um
tanto melancólica, se torna protagonista de sua vida aprisionada pela rotina.
Um Teto Todo Seu é uma possibilidade para mulheres, é necessário que
possibilidades e oportunidades existam hoje em dia para nós mulheres, que
diferentemente da irmã de Shakespeare, podemos pensar em nossas carreiras, para a
literatura ou nesse caso específico, para o cinema. Os números evidenciam a
quantidade de mulheres no meio cinematográfico mas a quantidade de mulheres que
conseguem a direção em projetos que não seja de cunho independente e pessoal
ainda é mínima. Existem mulheres na área, capazes de assumirem a produção que
for, lhes falta a brecha para estes trabalhos, pois hoje no século XXI já temos nossa
independência, nosso teto e nosso lucro. Se a presença de mulheres tomando a frente
dos olhares no cinema, seja ficcional, documental, ensaístico, entre outros, é
incômoda, faço dos dizeres de Laura Mulvey no final de seu ensaio como meu
desfecho (e convite para incomodarmos muito mais além da detenção do olhar):
“lamentamos muito”.
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